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MARTÍRIO EM JUDAS AND BLACK MESSIAH

    Assisti ao filme de Shaka King, diretor que eu realmente não conheço, mas aparenta ser um artista ativo em programas alternativos na TV norte-americana. O seu filme Judas And The Black Messiah, já antecipo, é um dos mais importantes filmes vindos da fábrica hollywoodiana de ideologias, nos últimos anos.

     

    Em geral o cinema estadunidense é cúmplice de todo tipo de golpe e violência ao longo da história: desde o genocídio dos índios, passando pelo racismo e macarthismo (espécie de operação Lava Jato que antecedeu a nossa em 60 anos) e etc. Essa máquina de propaganda não atua apenas em termos gerais, explicitamente políticos, mas também nas influências sutis de comportamentos, com viés ideológico evidentemente capitalista e excludente (pleonasmo). Judas and the Black Messiah fala, para mim pela primeira vez, de um líder estadunidense socialista: Fred Hampton, líder dos Panteras Negras, assassinado pelo FBI.

     

    A abertura do filme, pode ser dividida em duas partes: primeiro cenas documentais da atuação dos Panteras Negras e seu valor sócio-comunitário, muito interessante, seguida da lavagem cerebral ideológica do FBI, que atua quase como uma stazzi americana anti-comunismo.

     

     

    A segunda parte é uma apresentação do anti-herói do filme. As coisas nesse momento são imageticamente muito interessantes e colam, digamos assim, até certo ponto. Eu gostaria muito mais de um retrato realista e menos estilizado mas, lembremos, é um filme americano, então ele vem com essa carga “didática”. A fotografia é super estilizada, eu acho isso meio superficial, mas não chega a ser um uso completamente clichê da paleta de cores. Gosto muito de certos movimentos de câmera, da retórica filmográfica quase de clip que em determinados momentos é utilizada no filme. A abertura parece ter essa intenção de capturar o espectador pela dinâmica imagética. Não é o que eu gostaria, mas vá lá, divertida.

     

     

    O filme prossegue com alguns momentos típicos de filmes de suspense/policial/espionagem, intercalando cenas do interior do grupo dos Panteras com as reuniões do FBI. A forma como os federais atuam é bastante próxima da criminosa, com uma posição de superioridade e chantagem para alcançar seus objetivos. Os que assistiram o final do personagem de Bill O’Neal entenderão, pelo resultado.

     

     

    As atuações estão muito boas, mas não são espetaculares, são razoáveis. Lakeith Stanfield até deixa a desejar, na minha humilde opinião, se penso no aspecto dramático que seu personagem enfrenta, uma espécie de círculo peripatético que poderia ter explorado melhor, no limite entre a malandragem e a impossibilidade de ler todos os sinais de sua posição. Jesse Plemons segue seu padrão de atuação, nem mais nem menos.

     

    Daniel Kaluuya deu vida à aspectos intimistas de seu personagem, isso é um mérito inegável, embora o intercalamento entre radicalismo e uma “sobriedade de ancião” soe um pouco forçado. A melhor imagem desse filme, para mim, vem da atriz Dominique Fishback. Embora o romance de sua personagem, Deborah Johnson com Fred Hampton, seja retratado de forma bastante discreta e por isso mesmo humana e delicada, ela acaba por ser a face do horror diante da grande denúncia do filme: a execução orquestrada pelo FBI, no papel de milícia anti-comunista. Aliás, detalhes da visão de gênero que os Panteras defendiam são também de muito valor no filme. Mas é esse olhar de Debora/Dominique que, afinal, nós faz adentrar o horror de um braço do Estado executando um adversário ideológico, um jovem de 21 anos.

     

     

    Impressionante louvável o trabalho de resgate de memória. O cinema foi a memória do século XX, mas uma memória  branca-capitalista, seletiva! Por sorte isso está mudando, lentamente. Pensei também em Marielle Franco, assassinada por milícias de direita no Rio de Janeiro. Ressalvada a distância histórica, ambos, Fred e Marielle eram lideranças negras com muito potencial, ambas martirizadas por bandidos com proteção estatal. A direita no Brasil e no Mundo é radical: corta o “mal” pela raiz. Felizmente não são mais donos do imaginário, ao menos não completamente.

     

    Inspirado no filósofo David Fisher há um pensamento segundo o qual “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. É um sequestro e morte do sonho. Talvez a memória refrescada por novos artistas possibilite também reavivar utopias socialistas. Mas aqui já é o torcedor falando. O filme é importante e obrigatório para o século XXI.